terça-feira, 1 de outubro de 2019

Histórias de infâncias na rua: uma narrativa entre violações de direitos e proteção da vida


Itamar Sousa de Lima Júnior militante do MNMMR-PE defendeu sua dissertação de mestrado em psicologia no mês de abril de 2019, sua pesquisa investigou crianças e adolescentes em  situação de rua na cidade do Recife.

Confira o resumo, a introdução da dissertação e o Link para baixar o texto abaixo:

Esta pesquisa visou compreender a experiência de situação de rua de crianças e adolescentes na cidade do Recife. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de base fenomenológica do tipo pesquisa intervenção. A investigação foi realizada em uma Organização da Sociedade Civil de referência no trabalho socioeducativo com crianças e adolescentes em situação de rua no município. Participaram deste processo nove crianças e adolescentes de ambos os sexos, sendo sete meninos e duas meninas, com idades entre 11 e 17 anos, todos há mais de um ano em situação de rua. Como instrumento de pesquisa adotei a observação participante, a entrevista reflexiva e diários de bordo. A partir das narrativas colhidas e registradas no diário de bordo e dos relatos dos encontros e da entrevista reflexiva surgiram grandes temas que se constituíram em no que aqui chamaremos de constelações, são elas: Extrema pobreza, Violência, Ilhas de proteção, Brincadeira na rua: o lúdico e o perigo, Em algum momento vai se chorar por isso, Minha vida é um inferno e Falsa liberdade. Tais constelações iluminadas pelas reflexões de Hannah Arendt possibilitaram, além de uma maior compreensão das experiências destes meninos e meninas, indicações de caminhos para novas formas de atuação com esse público. Assim, as condições humanas que constituem o fenômeno da situação de rua como a extrema pobreza e a violência figuraram com destaque para entendimento das violações de direitos desse grupo, mas também foi possível compreender a necessidade de proteção que é reivindicada por essas crianças e adolescentes e que nos compele a uma atividade política que se ocupe do amor ao mundo.
Palavras chaves: Crianças e adolescentes em situação de rua; Hannah Arendt; Vulnerabilidade social.
 


Introdução

Esta pesquisa buscou compreender a experiência de crianças e adolescentes em situação de rua a partir das reflexões que surgiram no percurso realizado. A estruturação deste trabalho acompanha o caminho trilhado por mim até chegar ao que me impulsionou para esta investigação. Eu sou educador social de rua, militante político da defesa dos direitos de crianças e adolescentes e psicólogo. Os meus primeiros contatos com crianças e adolescente em situação de rua se deram em 2013 quando eu ainda era educador social. A partir desta prática profissional fui compelido a incidir politicamente pelos direitos destes meninos e meninas, o que me levou ao debruçar mais interessado sobre a temática e que depois desdobrou na ideia de investigar a experiência de crianças e adolescentes em situação de rua.

Foi pela minha aproximação com os meninos e meninas, com as instituições de atendimento e pela precariedade existencial destes meninos e meninas e suas famílias que decidi compreender melhor a vida destas pessoas, a fim de criar possibilidades e estratégias novas para o enfrentamento das desigualdades vivenciadas por eles e elas.

Pessoas em situação de rua são marcadas pela exclusão social,  racismo, preconceito e estão privadas de direitos básicos como saúde, educação e moradia, por exemplo; é como se diz nos lugares de discussão sobre a temática em questão; eles lutam “pelo direito de ter direitos”. Este fato se agrava no caso de crianças e adolescentes em situação de rua por causa de seu estado peculiar de desenvolvimento e pela violência advinda da negação dos direitos da infância e adolescência como ter um ambiente acolhedor, livre de drogas, de exploração sexual e do trabalho, entre outros. No caso de crianças e adolescentes é preciso que lhes sejam preservadas a qualidade vital[1] que irá fazer com que se desenvolvam e cheguem à vida adulta sem prejuízos.

Com estas inquietações e movido pela esperança de criar oportunidades para a promoção da dignidade destes pequenos, me debrucei sobre uma pesquisa qualitativa de base fenomenológica do tipo pesquisa intervenção a fim de compreender a tal experiência[2]. A investigação aconteceu em uma Organização da Sociedade Civil (OSC) de referência no trabalho socioeducativo com crianças e adolescentes em situação de rua na cidade de Recife; que já atua há mais de 30 anos nas ruas na capital Pernambucana e região metropolitana. Participaram da pesquisa nove crianças e adolescentes de ambos os sexos, sendo sete meninos e duas meninas, com idades entre 11 e 17 anos. Estes estavam em situação de rua há mais de dois meses, alguns há mais de quatro anos.  

A coleta dos dados se deu a partir da minha observação participante de encontros realizados na instituição; estes encontros eram conduzidos conjuntamente por mim e por educadores (as) de referência para os meninos e meninas (este modo de trabalho é uma prerrogativa tanto minha como da instituição), além de uma entrevista reflexiva conduzida por mim. Assim, surgiram as narrativas dos encontros dos diários de bordo contendo minhas impressões e afetações, o que gerou uma grande narrativa contendo todo o material a ser analisado. A partir da análise desse conjunto de narrativas surgiram grandes temas que chamei de constelações, pois ao nosso modo, o sentido dado ao material colhido se assemelha a um conjunto disforme que poderá ser aglomerado de acordo com a percepção de cada pesquisador e do sentido que lhe for indicado.

Destas e nestas constelações contamos com a perspectiva arendtiana que nos ajuda a entender a infância como uma instância a ser cuidada pelos adultos que são os responsáveis pela preservação do “mundo comum”, ao qual as crianças são “recém-chegadas” e precisam ser “apresentadas”  pelos responsáveis de forma gradativa e sistemática para que sua “qualidade vital” seja sempre preservada (durante o texto a perspectiva arendtiana e os termos utilizados pela autora serão explicados). Assim, surgiram as constelações que chamei de Extrema pobreza, Violência, Ilhas de proteção, Brincadeira na rua: o lúdico e o perigo, Em algum momento vai se chorar por isso, Minha vida é um inferno e Falsa liberdade.

As constelações revelaram que a condição de extrema pobreza destas famílias é um fator condicionante[3] no sentido arendtiano  para a situação de rua destas crianças e adolescentes, além de denunciar que a violência é algo constante no cotidiano das ruas, mas que existem lugares e pessoas que conseguem cumprir o papel de cuidado com estas crianças, a isto chamamos de Ilhas de proteção. Compreendemos que é preciso um compromisso para além da garantia de direitos para que seja apresentado o mundo às crianças e adolescentes, é preciso que haja o compromisso político para fazer com que o mundo dos homens consiga receber a novidade de quem está começando a viver. Ainda discorremos preliminarmente sobre o universo infantil da brincadeira e dos riscos, sobre o impacto que tamanha desumanização causa na vida de todas as pessoas, seja de quem está na rua, seja de quem lida diretamente com este problema social e ainda pontuamos sobre a ideia errônea de liberdade que ainda é atribuída a estes meninos.



[1] Segundo Arendt (1997) a qualidade vital da criança consiste na proteção privada da intimidade familiar. Proteção esta que garante segurança para que a criança alcance a maturidade; sem que seja exposta ao espaço público do mundo, espaço onde os adultos, e só eles, decidem sobre os caminhos do mundo.
[2] Segundo Benjamin (1994) a experiência é algo a ser transmitido. As narrativas são o exemplo de como a experiência tem a função de comunicar aos mais jovens algo vivido pelos mais velhos, para isto as experiências precisam ser comunicáveis. Para o autor a dificuldade de transmitirmos a experiência tem modificado a forma como nos relacionamos e criado uma pobreza de experiências.
[3] Segundo Arendt (1999) os seres humanos vivem sob algumas condições humanas; tudo aquilo com que entramos em contato nos condiciona e ao entrarmos em contato com algo também o condicionamos a nós (cabe diferenciar que não estou falando aqui do condicionamento advindo do behaviorismo baseado no aprendizado entre estímulos e comportamentos). Para Arendt (op. cit.) exercemos três atividades fundamentais: o labor, atividade correspondente ao processo biológico do corpo, necessidades vitais que nos conferem a vida propriamente dita. “A condição humana do labor é a própria vida”. O trabalho, correspondente aos artifícios da existência humana, os materiais, instrumentos, meios artificiais que diferenciam das coisas naturais do mundo. “A condição humana do trabalho é a mundanidade”. A ação é a terceira das atividades, esta é a única que se exerce diretamente entre os seres humanos, equivale à condição humana da pluralidade “ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo” (p.15). Estas atividades humanas e suas respectivas condições estão estritamente ligadas às condições gerais da nossa existência; o labor assegura além da sobrevivência de cada pessoa a preservação da espécie humana; o trabalho e seu produto garantem uma certa permanência e durabilidade à nossa vida na terra, na medida em que o que produzimos nos ajuda a manejar melhor a vida; e a ação ao criar e estabelecer corpos políticos permeados pela história.   


Baixar: Histórias de infâncias na rua.PDF

Para referenciar este texto, segundo ABNT usar a seguinte formatação:

LIMA JÚNIOR. I. S. Histórias de infâncias na rua: uma narrativa entre violações de direitos e proteção da vida. 2019. 84 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Católica de Pernambuco. Programa de Pós-graduação em Psicologia. Recife.

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